Disciplina - Sociologia

Sociologia

24/10/2012

Uma tarefa do nosso tempo

Por Paulo Hebmüller / Jornal da USP

Depois de um roteiro tortuoso que passou pelo Equador e pelo Peru até desaguar no Brasil via Tabatinga – município amazonense na tríplice fronteira com Peru e Colômbia –, o refugiado haitiano Rubens Michel chegou a São Paulo no ano passado. Atualmente, trabalha na construção civil, mas reivindica do governo brasileiro a oportunidade de poder estudar para, no caso de voltar a seu país, ter melhores condições de ajudar na reconstrução e desenvolvimento do Haiti. Michel tem sentido literalmente na pele que as máximas que o Brasil gosta de cultivar a respeito de sua hospitalidade para com os estrangeiros nem sempre estão no terreno da realidade – ou se limitam a determinados grupos. “Tenho medo da Polícia. Já ouvi muito o ‘mão na cabeça’, sem saber por quê. O preconceito é muito forte em São Paulo”, relata.
“Claramente somos marcados por duas atitudes opostas: acolhedores, é verdade, mas preconceituosos também.

O preconceito, a intolerância, a rejeição e a xenofobia, quando não expressos, estão latentes”, considera Dirceu Cutti, editor da revista Travessia e assessor da diretoria do Centro de Estudos Migratórios (CEM) da Missão Paz de São Paulo. Essa constatação esteve no foco dos debates do seminário Vozes e Olhares Cruzados, que a Missão Paz promoveu no dia 28 de setembro no Instituto Teológico São Paulo (Itesp), no bairro do Ipiranga.

A Missão Paz, da Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos), é integrada por paróquias católicas e entidades como o CEM e a Casa do Migrante. São locais de refúgio e auxílio procurados intensamente tanto pelos refugiados quanto pelos trabalhadores – em boa parte sem documentação regular – que vêm tentar a sorte no Brasil. Lugares sensíveis, portanto, para detectar as mudanças nos perfis das pessoas que chegam a São Paulo e suas novas demandas.

Preconceito – Nas últimas décadas do século 20, o Brasil “expulsou” milhões de cidadãos que emigraram para lugares como Estados Unidos e Japão (caso do fenômeno dekassegui). Nos anos recentes, voltou a ingressar no rol das nações receptoras de imigrantes. A dualidade exposta por Dirceu Cutti permanece: de um lado, a nova situação do Brasil como economia emergente tem atraído trabalhadores com alta qualificação, vindos inclusive dos países desenvolvidos.

De outro, é grande o número de imigrantes asiáticos, africanos e latino-americanos (dos quais o caso dos bolivianos em São Paulo é o mais evidente) que vivem em situação ilegal no País e trabalham em condições de exploração e subemprego. Além dessas dificuldades, ainda são alvo de preconceito por parte da população de um país que gosta de se imaginar “aberto a todas as raças” e onde “todos são bem-vindos”. A situação é analisada no livro Las políticas públicas sobre migraciones y la sociedad civil em América Latina, lançado no seminário (leia o texto ao lado).

Representantes de várias das tendências imigratórias deram seu depoimento no encontro. A boliviana Lúcia Espinoza Pinto, de 27 anos, relatou seu verdadeiro calvário pelas oficinas de costura e a falta de assistência durante a gravidez de seus filhos gêmeos. “Os bolivianos vêm com a ilusão de ganhar algum dinheiro. Não quero que ninguém passe o que eu sofri”, disse. Ela encontrou amparo na Missão Paz e hoje está regularizada. Enquanto o marido trabalha, Lúcia pode se dedicar a cuidar dos filhos – além dos gêmeos, o casal já tinha uma criança. Sua mãe, que também mora em São Paulo, é uma verdadeira avó dos tempos da imigração: dos seis netos, três são bolivianos, dois brasileiros e um, argentino.

O dramático depoimento de uma advogada colombiana, refugiada por perseguições políticas e ameaças de morte em seu país, foi apresentado em vídeo, sem identificá-la. Também falaram três jovens angolanos que estudam em universidades particulares de São Paulo. Solange Malorita Tomás, de 23 anos, se emocionou ao lembrar da colega Zulmira Borges Cardoso, assassinada em maio após uma briga provocada por um cliente brasileiro que chamou um grupo de angolanos de “macacos” num bar do bairro do Brás. Depois do crime, vários movimentos criaram a Associação Zulmira Somos Nós.
Álvaro Pereira Bastos, de 24 anos, relatou que só quem é negro “sente o preconceito” no Brasil. Bastos, que estuda Direito, defende mudança na legislação brasileira para acolher imigrantes. O chamado Estatuto do Estrangeiro é de 1980. Está em debate na Câmara um novo texto, o Projeto de Lei 5655/2009, alvo de críticas no seminário. Para os participantes, o projeto e outros instrumentos legais do País precisam ser reformulados.

“São Paulo é uma cidade que se desenvolve a partir da chegada de estranhos. Os jesuítas vieram no século 16 com a missão de ‘civilizar as gentes desta terra’. Esse construto não desapareceu totalmente”, diz Zilda Iokoi, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que dirigiu uma das mesas do seminário. Na FFLCH, a docente é coordenadora do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos, que tem trabalhado em parceria com algumas atividades da Missão Paz.

Para a professora, é preciso defender o direito de livre trânsito de todos, “num momento em que o capital transita pelo mundo sem pedir licença de ninguém”. “Essa é uma tarefa do nosso tempo”, considera. No caso do Brasil, não se trata de favor nenhum, como acentuou a estudante angolana Maria Fernanda Pascoal, de 22 anos. “A gente não está pedindo nada, porque aqui está o sangue de nossos avós. Vamos lutar por nossos direitos”, afirmou.
Esta reportagem foi publicada no site http://espaber.uspnet.usp.br/ em 14 de outubro de 2012. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do autor
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