Disciplina - Sociologia

Sociologia

28/03/2012

O câncer nas Humanidades

O processo de especialização precoce no âmbito das áreas de humanidades, articulado com a segmentação de saberes à imagem do que ocorre nas hard sciences, tem levado a uma desintegração de sua capacidade de pensamento e intervenção, talvez ainda mais do que a chamada crise de paradigmas.
A perda de erudição daí decorrente e a dificuldade de obter uma visão complexa dos seus objetos não resultaram em ganho de atualidade, ao contrário: é como se as questões contemporâneas se revelassem cada vez mais impenetráveis.
Os objetos tornaram-se indisciplinados, e a especialização, com seu léxico derivativo de laboratórios e pesquisas, apenas uma forma geral de maquiagem para captação de recursos, muito mais que um método efetivo de compreensão dos fenômenos de cultura.
Nesse quadro de discussão da “crise das humanidades”, o nome de Martha C. Nussbaum (1947-), professora no Departamento de Filosofia da Universidade de Chicago (EUA), tem sido bastante citado.
Nussbaum tem uma obra prolífica, tanto em sua área de formação, os estudos clássicos (da qual mencionaria A Fragilidade da Bondade, de 1986, sobre a noção de “fortuna” na tragédia antiga – salvo engano o único dela saído no Brasil, pela Martins Fontes), como em políticas públicas (cujo exemplo mais conhecido deve ser Cultivating Humanity, de 1998).
Detenho-me aqui em seu último livro, Not for Profit – Why Democracy Needs the Humanities (Princeton, 2010). Trata-se de uma obra apressada e simplista sob vários aspectos, com amplo uso (estratégico, embora) de noções de senso comum no debate educacional dos Estados Unidos.
Não é, portanto, o melhor livro para conhecer as suas ideias, mas apresenta um conjunto importante de questões atuais, cujo escopo explícito de “manifesto” – dirigido não a especialistas, mas a leitores comprometidos com as ideias de democracia pluralista, não nacionalista e de espectro global – o torna ainda mais urgente.
Educação para o PIB
Tomando por base os casos dos Estados Unidos e da Índia, onde Nussbaum desenvolve trabalhos de campo, alguns ao lado do Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen, ela denuncia o que considera um verdadeiro câncer a se alastrar silenciosamente pelo mundo: a redução da ideia de educação a uma contribuição para o PIB per capita do país, desqualificando o seu papel na constituição da vida democrática – esta entendida no seu grau mais abrangente e primitivo de defesa dos valores do pluralismo, das liberdades civis, da conquista de direitos iguais para os cidadãos, independentemente de raça, classe, gênero, orientação sexual, religião etc.
A agenda é conhecida, e não há ninguém de bom-senso que possa discordar dessas reivindicações, mas por isso mesmo é menos atraente como leitura ou descoberta intelectual.
O que é mais interessante, por ir contra a tendência mundial dos programas oficiais de educação, é a sua proposta de um currículo que se oponha, ainda dentro do liberalismo, ao utilitarismo neoliberal.
O essencial, para Nussbaum, é favorecer, do jardim de infância à graduação, um processo de formação ampla, não profissionalizante nem tecnicista, cujo objetivo é levar o aluno a pensar criticamente (o que significa incentivá-lo à constante inquirição e ao autoquestionamento, bem como a ser menos submisso à autoridade e à pressão dos pares), a exercitar a imaginação (em que o papel principal cabe às artes, compreendidas menos como “obras” de arte do que como práticas de engajamento individual e coletivo) e o entendimento empático do outro (com destaque para jogos, brincadeiras e dramatizações).
No horizonte desse processo de inspiração “socrática”, irredutível à ideia de “recursos humanos” para o desenvolvimento econômico, está a ideia de “cidadania mundial”, que Nussbaum articula à noção de capabilities, isto é, o conjunto dos direitos associados às aptidões individuais, os quais motivariam programas de ações positivas que consideram concretamente circunstâncias e pessoas, com suas gritantes diferenças na vida real, mais do que abstrações cívicas ou intelectuais.
Não chega a ser uma grande novidade, mas não custa repor uma conversa menos obtusa do que a vasta naturalização em curso da identidade entre educação e comércio.

Esta reportagem foi publicada no sítio revistacult.uol.com.br/.Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.
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