Disciplina - Sociologia

Sociologia

18/02/2010

Carnaval, cada vez mais refém da indústria cultural

Festa popular que virou uma das principais marcas do Brasil no mundo, o carnaval reflete - desde a aparição dos primeiros blocos, ainda no século XIX, as mudanças vividas pelo país e também muitas virtudes dos brasileiros. Afinal, não é uma operação simples elaborar um desfile com todos os seus adereços; coordenar um conjunto de músicos que rivaliza, em volume, com uma orquestra sinfônica; articular algumas centenas de figurantes num desfile que tem tempo certo para desenvolver-se na avenida. E tudo isso com a garra e a graça dos grandes espetáculos. O carnaval, que implica um esforço organizativo que atravessa todo o ano para desembocar em fevereiro, já foi inclusive tema de tese de doutorado na Coréia do Sul, na área de administração de empresas, como exemplo de organização espontânea e informal mas rigorosa que poderia ser aplicada em outros empreendimentos humanos.
Ponto para o povo brasileiro, autor dessa façanha! Mas há reparos, também. O festejo popular começou a tomar sua feição atual há mais de 80 anos, quando o país ainda era ingênuo e pouco desenvolvido. As escolas formalizaram-se a partir da década de 1920 e, sob Getúlio Vargas, ganharam financiamento público, mas também controle policial com a exigência de seu registro sob uma denominação padronizada. Mesmo assim, o espontaneismo da manifestação cultural popular, com vívidas raízes africanas, se mantinha e eram os barracos dos morros do Rio de Janeiro que alimentavam a torrente do samba que descia para a avenida.
Isso começou a mudar na década de 1960, com a invasão das quadras de escolas de samba e dos lugares de destaque dos desfiles por socialites e outras personalidades de classe média. E surgiram denúncias da descaracterização do samba e da apropriação desta manifestação cultural própria do povo pela elite que "embranquecia" uma festa "negra". Aquele foi o caminho que o carnaval seguiu para se transformar no que é hoje, e as escolas tomaram a dimensão de um negócio cultural lucrativo e envolve a participação de milhões pelas cidades brasileiras.
Mas o mundo das mercadorias não para, como é perceptível na nova realidade dos sambistas que disputam a honra de serem autores dos sambas enredos, ou pelas próprias escolas de samba em seus esforços para obter financiamentos para desfiles cada vez mais caros.
O que aconteceu no Rio de Janeiro e em São Paulo é um exemplo. Desde a década passada difundiu-se chamado enredo-jabá, isto é, aquele que é feito para promover um patrocinador, geralmente uma empresa. Houve também a industrialização do samba, existindo organizações que - como agências - se propõema compor para várias escolas. Se emplacar dois sambas em um ano, seu ganho pode ultrapassar 600 mil, diz o historiador do samba e torcedor da Império Serrano, Luís Antônio Simas. Tudo isso embalado pela expectativa de faturamento com os produtos do carnaval na forma de direitos autorais e de arena pagos para os autores dos sambas ou da comercialização de CDs e DVDs. É o próprio samba, como arte, que perde com isso, diz Luís Antônio Simas, pois a própria forma de compor fica presa a uma fórmula de sucesso.
Paga-se também para entrar no próprio processo de escolha de um samba enredo (que muitas vezes envolve mais de 40 concorrentes). Em São Paulo, um autor precisa desembolsar 10 mil reais só para entrar na disputa, diz Aquiles da Vila, arquiteto e compositor carnavalesco. Mas, se vencer, tem a perspectiva de ganhar, em direitos autorais, uns 40 mil reais.
No caso das escolas de samba, a mercantilização envolve os próprios enredos, e envolve somas ainda maiores. Cerca de um terço do orçamento de 9,5 milhões de reais da Grande Rio para o desfile deste ano veio do contrato com a Ambev: recebeu três milhões de reais para referir-se a uma marca de cerveja e ao algarismo que a caracteriza, o n° 1. A tradicional Portela, por sua vez, recebeu 1,5 milhão da fabricante de computadores Positivo para incluir no enredo referências à marca e também à inclusão digital.
O samba virou assim uma indústria cultural com os adereços característicos dela. Nesse sentido, tem razão o carnavalesco paulistano Osvaldinho da Cuíca quando denuncia que a "industrialização dos temas é a grande responsável pela queda da qualidade de nosso carnaval", e que a "mercantilização está levando o lado cultural para o ralo". De fato!
Este conteúdo foi publicado em 18/02/2010 no sítio www.vermelho.org.br . Todas as modificações posteriores são de responsabilidade do autor original da matéria.
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